QUEM VEM COMIGO

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

NUNCA MAIS



Um sotaque perdido, talvez de uma vida anterior a esta, me surpreendeu enquanto recitava poesia na concha da sua orelha em leito de lençóis amarrotados.
Parei, paramos assustados.
De que longe passado, de que espaço, havia saído assim, fugido de mim, esse enrolar de língua doidamente machucado?
De que pedaço esquecido na memória do tempo, de que dobra da pele, de que desconhecimento, de que peça ou filme, de que partida fantasia, de que ilha abrigada no meu peito?
De onde saiu esse idioma desconhecido que nos feriu ouvidos? Com certeza não veio desse leito.
Veio de tão fundo que nos deixou entorpecidos e até o amor perdeu os seus habituais ruídos.
Fizemos um amor novo, estranho e diferente, como crentes em silêncio profundo, e nos reconhecemos além desse mundo num globo perdido no espaço e no tempo.
E descobrimos que a gente vem amante faz tantas vidas que não há mais saída, nos achamos entre laços e espirais, por mais que o deserto nos apague os passos. Estamos condenados ao ancoramento num mesmo cais.
Nunca mais haverá um nunca mais...
[elza fraga]

domingo, 25 de dezembro de 2016

O QUE SOBROU DO PASSADO


Quero só ouvir a sua voz
mais nada,
trazendo de volta a história
e atualizando no presente,
sem erro, sem quebra de link,
vinda da caixa da minha memória
buscando passado distante
nos tintins do nosso drink
e sussurrando
(tão amante como em outras eras)
um bom Natal com promessas insanas
iluminando novamente a vida
estraçalhando bocas como feras
e desmanchando para sempre
a cama.
[elza fraga]
Imagem: Versos de Nando Reis

AINDA ASSIM


A minha chama ainda arde
sempre arderá
não importa da sua ausência
a cicatriz
a lembrança do que foi persistirá
por todos os Natais
maior e mais viva
sempre mais
mesmo que o tempo
traga chuva/ lave a árvore
não desmanchará os galhos
não levará a raiz
sentimento não se apaga
como se remove
de quadro rabiscado
o que foi escrito a giz...

[elza fraga]
Imagem: verso de Nando Reis

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

INCLINA-ME


Se fico
sofro
se parto
morro
se paro
esbarro
no coro
dos dissimulados.
Que lado
escolho?
[elza fraga]

ÚLTIMO APELO



Segura-me forte

[porque sei que sou
pássaro sem norte]
     
pelas asas abertas

[sem direção
sem rumo, sem metas]

prenda-me ao chão

[quando estiver solta
jogada a própria sorte]

impeça-me o voo

[não deixe seu coração
me abrir a cela]

e me desvela

[evite o caminho sem volta
- o vidro escancarado da janela]

não me empurra as pesadas asas

[abrindo na alma cansada e só
o mais fundo corte]

me condenando sem dó
a morte.

[elza fraga]





segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

ACELERADOR


Não quero a ostentação
de amor
em carinho 
letal arma empunhada,

quero o segredo
e a delicadeza
no ninho
onde dormem
protegidos
correndo cativos
para todo o sempre

- embalados no seio -

os suspiros
os arrulhos
os arrepios

do que não freio.

[elza fraga]

domingo, 18 de dezembro de 2016

QUANDO O AMOR ENVELHECE



Repudiado, cuspido,
recusado, ironizado,
pisado como se fosse
folhas velhas de idade
caídas no chão de outono

foi-se o amor pelo tempo
caminhando de bizarro
envelhecendo - coitado -
bengalando por vingança
quem lhe queria detalhes,

esse amor incomodado,
e hoje ao pé do fim,
vai atravessar o beco
das almas dos não amados
na tentativa bendita

de retornar ao passado
tentando fugir do fim
pra voltar recomeçado,
renovado, remoçado,

correndo em busca de mim.

[elza fraga]

ESTAGNAÇÃO



Acontecem coisas o tempo todo, todo o tempo, boas, más, mais ou menos, invisíveis, risíveis, sofríveis, passionais, formais, normais, estranhas, umas reviram as entranhas do universo, outras só servem de pano de fundo para versos, algumas despem e se despedem sorrateiras, outras ficam uma eternidade, só de maldade pra mostrar que o frio queima tanto, ou mais, que as brasas da existência, só em mim nada acontece nem um acaso

- águas paradas - tudo é morno in-disposto ou raso.

[elza fraga]

METADES




Quantos pedaços 
de mim
forasteiro
você ainda
precisa
pra se fazer
enfim
inteiro?

[elza fraga]
 assistindo a vida escorrendo nos dedos.

Imagem: Trecho de poema de Ferreira Gullar

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

RETRATO FALADO COM PHOTOSHOP



Eu digo, mas me contradigo quando vejo a besteira que disse.
Eu sou radical, mas mudo de opinião quantas vezes forem necessárias.
Eu sou fogo nas ventas, mas amoleço na hora certa, com a pessoa certa.
Eu sou ferina, mas doce, e meiga, e afagadora, para merecedores.
Eu sou desafiadora, mas refém na medida do possível.
Eu sou bruta, mas de uma delicadeza que só quem conhece confirma.
Eu sou feroz, mas domesticada quando chamam pras coleiras e gaiolas com jeitinho.
Eu sou livre, mas prisioneira dos possíveis encontros e encantos.
Eu sou de mim, mas sou do outro quando o outro me merece.
Eu sou complexa, mas de uma simplicidade de fazer cair o queixo.
Eu sou modesta, mas não queiram conhecer meus dez por cento de arrogância.
Eu sou leal, mas não me traiam por delicadeza, eu viro a mesa.
Eu sou tolerante, desde que não me venham com intolerâncias.
Eu sou autoritária, mas se pedir com jeitinho até obedeço.
Eu amo, mas eu detesto no momento seguinte com a mesma força, então não me testem os limites.
Eu sou autêntica, ah - isso é imutável, não tem negociação!
[elza fraga sendo elza fraga]

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

NA TERRA DO AQUI DENTRO



Aqui dentro do meu peito o terreno é estranhamente sombrio e triste, todo tomado de ervas daninhas.
Cresce só o mato, sem planejamento, sem semeadura, sem plantio de galhos, sem mão diligente e dócil a acarinhar o chão tão fértil.
Os torrões de terra aparecem nas raízes, encharcados.
Muito choro rega a indomável hera.
Muito choro rega cada pedacinho de chão.
Muito choro chorado pra dentro no escuro existente, em leitos inimigos feito de folhas amarelas, que não trazem mais descanso de sono, não trazem mais acalanto, não trazem mais conforto, só entendem mesmo de pranto e de estender nas costas o duro da pedra.

Não há cuidado do proprietário em aparar a grama, arrancar as ervas más, fazer semeadura de flor. Deixa que cresçam espinhentas e malévolas autônomas quimeras, formando colunas onde não entra a claridade de um sol matinal, ou de uma estrela piscante, ou de um clarão de luar em frias madrugadas nascentes.
O único interesse é desbravar um minúsculo pedaço, armar a rede no espaço menos denso, se balançar um tanto, descansar até bastar, se fartar da seiva que a terra ainda oferece.
Cada vez mais rara seiva, cada vez mais agreste seiva, cada vez mais murchante seiva.
Dar pausa pra sonhar um pouco, enredar as pernas, nunca a alma, se revigorar para a busca do que nem sabe onde está, ou se existe em um outro canto.
E então, mais triste do que triste era, partir pra outro terreno, outra terra.
Partir que a vida é uma estrada que leva muitas vezes a lugar nenhum.

Sem entender que nesse território aqui é que mora o viço e o vício, a desolação e a ternura, a amargura doce e a urdidura, a paz e o suplício, a consolação e o medo.
Sem entender que é aqui nesse regaço cheio de mato e sombra que o sol se fará nascer num dia de festa, e as cores dominarão os muros, e as flores poderão sim invadir tudo, e tudo voltará a ser então como era.
Sem entender que é só ele chegar e entrar, dominar, esquentar, sorrir, plantar.
Estar presente em toda a trajetória.
Inventar a mais doida e linda história que alguém sequer pensou em escrever.

Esquecer as vielas paralelas, a chamada dos pássaros lá fora, as flores que se abrem convidando em outras terras, a vida que estua em carnes belas, a juventude lhe pedindo mais e mais ausência do meu regaço que é o seu recanto, do seu lugar que é o meu profundo peito apertado, e quente, e aconchegante.
Esquecer os outros colos, outras pernas, outras matas, outras regas.
E se deixar ficar na rede agora eterna.
E sorrir, e cuidar, e fazer do indomado mato um jardim, e semear seus braços no ‘aqui dentro’, e enfim plantar o seu único jardim
em mim!

[elza fraga]